No "O Calango Abstrato"
O Governo Budista da Birmânia não é Budista
Protesto pacífico de monges no Myanmar |
Pratico o Budismo há alguns anos. Pelo contato com sua prática e suas doutrinas, venho pouco a pouco aprendendo a tolerância, o respeito ao outro, o não-proselitismo, a percepção empática do outro e o altruísmo. Para mim, o Budismo vem nos últimos anos melhorando consideravelmente minha vida, como ainda está me permitindo torná-la um benefício para a vida dos outros, e não um malefício. Por isso, nunca pus na cabeça que amigos, parentes ou conhecidos só seriam felizes praticando a meditação, o Budismo e participando da nossa sanga. Pelo contrário: se alguém é feliz sendo muçulmano, e com isso não causa prejuízo a ninguém, por que tirá-lo do Islamismo?
Por isso que venho acompanhando preocupado a situação do Myanmar (ou Birmânia), onde ao mesmo tempo em que há uma ditadura, há também frequentes conflitos envolvendo Budistas e Muçulmanos. Eu poderia dizer que os budistas que recorreram à violência não são budistas, e o mesmo poderia ser dito dos muçulmanos, mas o fato é que eles se autointitulam budistas e muçulmanos e são reconhecidos como budistas e muçulmanos, o que nos torna todos, em todo o mundo, igualmente responsáveis pelos atos que são promovidos lá por budistas. Dito isto, posso dizer apenas que ambos os lados do conflito apenas não entenderam bem o que significam suas próprias religiões, e isso se torna ainda mais grave para os budistas.
Como pratico o Budismo, só posso falar profundamente dele. Diante de algumas notícias que não apenas li, como ainda fui atrás para me informar melhor sobre elas, cheguei à conclusão de que realmente os budistas que se envolveram nos conflitos em Myanmar não entenderam o Budismo. Se fôssemos fazer uma lista do que se está fazendo por lá, nos assustaríamos: 1) imposição do Budismo sobre estudantes cristãos; 2) apesar de o mesmo negar, tudo indica que o governo está matando muçulmanos; 3) prática institucionalizada do racismo contra estrangeiros, ocidentais e etnias minoritárias; 4) estabeleceu uma Ditadura Budista; 5) está promovendo uma fome sistemática; Essas são as piores, o que me deixa ainda mais triste, pois, como budista, sempre entendi o Budismo como algo mais respeitoso e humanista, e acho uma pena que não tenham entendido isso naquele país.
Não vamos falar de Direitos Humanos, pois está bastante claro nos exemplos que citei que as detratações estão ocorrendo. Falemos de Budismo. Existem vários preceitos e doutrinas no Budismo que foram simplesmente ignorados, e vocês budistas e simpatizantes que me leem sabem quais foram só de ler, né? Pois é.
Primeiro, o Budismo não é proselitista. O próprio Buda, ao ensinar, deixou claro que o darma se propaga pelo "vir e ver", ou seja, primeiro ocorre um interesse da pessoa, e em seguida vê e ouve. Isso significa que se alguém não quer ouvir ou ver o Budismo, simplesmente não vem. Se se alguém vem, é porque está interessado. Os desinteressados são apenas isso: desinteressados. Devem ser respeitados, pois o interesse não se força, deve vir naturalmente somente se houver realmente o interesse. É tanto que o Budismo chegou primeiramente no Ocidente não como pregação aos não-budistas, mas como uma religião trazida pelos budistas e realizada somente entre eles.
Segundo, está na cara de que o governo budista do Myanmar ignorou completamente o primeiro dos cinco preceitos (Eu tomo o preceito de abster-me de matar seres vivos) e o caminho óctuplo, principalmente opensamento correto, a ação correta e o meio de vida correto. Matar muçulmanos é não entender o Budismo, portanto.
Terceiro, o Budismo do governo do Myanmar não compreendeu as paramitas, não promove as quatro qualidades incomensuráveis em seu governo, além de promover discriminação e racismo, algo estranho ao próprio Budismo. Em parte, o argumento que alguns revolucionários estão dando no país é que os muçulmanos destruíram as estátuas de Buda no Afeganistão. Mais uma vez, isso significa que nunca entenderam o princípio da impermanência, pois um dia aquelas estátuas teriam de se acabar, como tudo o mais na existência, fosse pelas mãos dos talibãs, fosse pelo tempo e pela chuva.
Por fim, o que mais posso dizer é que o atual regime do Myanmar, que se diz budista, nem de longe compreendeu o que de fato é o Budismo. Ainda vi um cara que se diz budista que começou a fazer o que fazem muitos cristãos: argumentar para justificar ou contradizer os fatos. Sinto muito por ele, mas os fatos estão aí. O que nós, budistas, faremos diante disso? Por sorte, existem budistas engajados em uma luta não-violenta, que discordam do que vem ocorrendo no país, dentre os quais podemos citar Aung San Suu Kiy. Caso não saibam, a própria comunidade budista no mundo todo, a exemplo da brasileira, repudiam o tratamento do governo birmanês (vide as palavras do Monge Gensho a respeito disso cinco anos atrás).
Espero ter esclarecido essa questão aos amigos budistas e simpatizantes, como também aos amigos não-budistas que me questionaram sobre isso um tempo atrás, afinal, o Estado Laico é a maior conquista que um budista poderia ter em um país, e não um Governo Budista.
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Um comentário:
Passagens do Sutra Mahayana do Parinirvana:
“Há três graus de matança: o inferior, o médio e o superior. O grau inferior consiste na matança de qualquer ser comum, desde uma formiga a várias espécies de animais. (...)
Como conseqüência da matança de grau inferior, a pessoa cairá no mundo infernal, no mundo dos preta (fantasmas famintos) e no mundo dos animais e sofrerá as dores próprias à matança desse grau. Por que deve ser assim? Porque mesmo os animais e outros seres comuns possuem as raízes do bem, por menores que elas possam ser. Eis por qual motivo uma pessoa que mata seres sencientes como esses deve receber a máxima punição por essa ofensa.
Matar qualquer ser humano, desde um mortal comum a um anagamin[2], constitui-se matança de grau médio. Como resultado desse ato, a pessoa cairá no mundo infernal, dos preta e dos animais e sofrerá as dores próprias à matança de grau médio. O grau superior de matança refere-se a matar os pais, um arhat, um pratyekabuddha[3] ou um bodhisattva[4] que atingiu o estado da não-retrogressão. Por esse crime, a pessoa cairá no grande inferno Avici[5]. Bons homens, se uma pessoa fosse matar um icchantika[6], essa matança não cairia em nenhuma das três categorias mencionadas. Bons homens, os vários brâmanes que eu disse ter matado, todos eles de fato eram icchantikas.”
“Quando observo o passado, recordo que era um rei de um grande estado neste continente de Jambudvipa. Meu nome era Rsidatta e eu amava e venerava as escrituras do Mahayana. Meu coração era puro e bom e eu não tinha nenhum traço de maldade, inveja ou avareza. Bons homens, naquela época eu abrigava os ensinos do Mahayana em meu coração. Quando ouvi brâmanes caluniando esses sutras corretos e justos, mandei matá-los imediatamente. Bons homens, como resultado dessa ação, nunca mais caí no mundo infernal.”
" Agora eu confio o correto Dharma, que é insuperável, aos governantes, aos ministros, aos altos oficiais e às quatro assembléias da Sangha. Se alguém aviltar o correto Dharma, então os ministros e os membros da Sangha devem repreendê-lo e convertê-lo à Sangha...
O Buda respondeu : Kasyapa, por eu ter sido um defensor do correto Dharma, possuo agora este corpo indestrutível. Ó Bom homem, os defensores do correto Dharma não precisam observar os cinco preceitos ou praticar regras de conduta apropriadas (quando se trata de defender o Dharma). Em vez disso, devem ter à mão facas e espadas, arcos e flechas, alabardas e lanças...
Mas mesmo que uma pessoa não observe os cinco preceitos, se defende o correto Dharma, então pode ser chamada de praticante do Mahayana. Os defensores do correto Dharma devem armar-se com facas, espadas e bastões. Mesmo que carreguem espadas e bastões, eu os consideraria homens que observam os preceitos."
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