Coma, beba, compre, trabalhe, fale, gaste pouco e viva muito!
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14 Nov 2011
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Por LETÍCIA SORG, COM MARGARIDA TELLES
Os prazeres estão mais acessíveis, e ficou mais difícil resistir às tentações.
Novos estudos mostram como ter mais disciplina para melhorar a qualidade de vida
Hoje não mais conversamos ao telefone, nós falamos à vontade em nossos planos “ilimitados”. Não entramos na internet, acessamos a rede em segundos, de onde quisermos, na hora que desejarmos. Não nos encontramos com os amigos, nós os adicionamos, os curtimos e os seguimos 24 horas por dia. Queremos aproveitar nossas experiências até o último minuto e provar de tudo um pouco. Buscamos mais prazer e não podemos perder nada. Os meios para isso estão ao nosso alcance: tudo parece mais fácil, mais rápido, e temos liberdade para escolher. Menos apegados a regras e mais sozinhos nos grandes centros urbanos, cabe somente a nós decidir. Melhor então atender aos nossos instintos do que se arrepender depois daquilo que não fizemos, certo?
Errado. Apesar de instigados o tempo todo a atender a nossas vontades – tento agora não ceder à de abandonar este texto e verificar as atualizações de meus amigos no Facebook –, é nossa força para resistir a elas que nos torna indivíduos mais satisfeitos e capazes. Numa sociedade que exalta a satisfação imediata, pode parecer contraditório, mas o autocontrole é, ao lado da inteligência, o fator mais importante para determinar nosso sucesso no trabalho, nas relações pessoais e na manutenção da saúde. Com a diferença de que a inteligência não pode ser muito alterada ao longo da vida. “Nossa pesquisa mostra que mesmo os adultos podem aprimorar seu autocontrole”, disse a ÉPOCA o psicólogo Roy Baumeister, autor do livro Willpower (Força de vontade), que será lançado no Brasil pela Lafonte no início do ano que vem. “Isso pode ajudar as pessoas a melhorar a própria vida.”
A ideia de que a capacidade de resistir a uma tentação pode influenciar muitos aspectos de nossa vida surgiu no fim dos anos 1960, com o psicólogo Walter Mischel, então pesquisador da Universidade Stanford. Ele decidiu propor um desafio simples a crianças em idade pré-escolar: se elas, sozinhas em uma sala, resistissem por 15 minutos ao impulso de comer um marshmallow, num prato a sua frente, ganhariam um doce extra. Cerca de 30% dos pequenos voluntários conseguiram ir até o fim do teste – e, até aí, nenhuma grande surpresa. Ela veio quando o pesquisador resolveu checar o que havia acontecido com as mesmas crianças quando elas cresceram. Mischel descobriu que quem conseguira esperar pelo segundo marshmallow era mais bem-sucedido em vários aspectos da vida. Intrigada, a comunidade acadêmica decidiu repetir o experimento. Um dos últimos foi feito na Nova Zelândia e publicado no ano passado. Os pesquisadores acompanharam 1.000 pessoas até os 32 anos, medindo seu autocontrole de várias maneiras: aplicando questionários, entrevistando pais e professores e os próprios indivíduos. As crianças capazes de moderar seu comportamento se tornaram adultos mais saudáveis, com menor tendência à obesidade, menos casos de doenças sexualmente transmissíveis e até menos cáries nos dentes. Também tinham menos problema com álcool, drogas e dívidas. E mais chance de criar os filhos ao lado do cônjuge.
Há várias diferenças entre o laboratório e o mundo real. A vida moderna nos oferece muitos marshmallows ao mesmo tempo. “A tentação foi democratizada”, diz Daniel Akst, autor do livro We have met the enemy (Nós conhecemos o inimigo). “O desafio é ter moderação diante da liberdade e da afluência.” Como exemplo dessa democratização, o Brasil já ultrapassou a marca de um telefone celular por habitante. E não é improvável que, daqui para a frente, topemos cada vez mais com pessoas como a assistente de produção Maya Mecozzi, de 24 anos, que fez do aparelho quase uma obsessão, um companheiro inseparável mesmo durante o sono. Muitos de nós já não conseguem desgrudar do celular. Não deixamos de carregá-lo nunca, nem nas férias, numa relação de dependência antes restrita à carteira ou às chaves de casa. Com a telinha sempre por perto – e o contato que ela proporciona com as redes sociais –, corremos o risco de negligenciar nossa vida real em favor da existência virtual.
Nossa luta contra as novas tentações, que se somam às antigas, é ainda mais relevante se considerarmos, como mostram as pesquisas mais recentes, que perdemos nossa capacidade de manter o nível de autocontrole à medida que desempenhamos tarefas cotidianas. É como se tivéssemos uma reserva limitada desse recurso e o gastássemos com o passar do tempo. Em seu laboratório, Baumeister descobriu que outras atividades, além de conter a gula diante de um doce, nos desgastavam. Segurar o choro diante de uma cena triste e tomar decisões como escolher um item diante de muitos tinham o mesmo efeito. Os cientistas ainda não sabem como ou por que isso acontece, mas observam que o desempenho das pessoas cai de uma tarefa para outra. Uma das hipóteses é que lhes falte motivação, um elemento fundamental para o autocontrole. Mas é possível que nosso cérebro não esteja preparado para manter a eficiência em tarefas complexas por tanto tempo e fique “cansado” sem que percebamos. Como o cérebro não é um músculo, que dói com a fadiga, é preciso prestar atenção a sinais mais sutis para detectar esse estágio de esgotamento. O professor Baumeister, da Florida State University, sugere observar a intensidade de nossas emoções. Se ficamos mais tristes do que o normal ao ver algo ruim, ou mais felizes quando vemos algo alegre, talvez seja o momento de parar e tentar recarregar as energias.
Ao tentar descobrir o que pode nos ajudar a “reabastecer o estoque” de autocontrole, os pesquisadores descobriram que ingerir uma bebida açucarada – adoçante não vale – pode ajudar. A hipótese mais provável até o momento para explicar o fenômeno é que sentir o sabor doce na boca nos dá uma dose extra de paciência. É pouco provável que a glicose tenha um efeito direto e significativo no metabolismo cerebral. Mas devemos tomar cuidado com essa estratégia para melhorar o autocontrole: podemos sair de uma tentação para cair em outra, o açúcar.
Não é à toa que pessoas como a bancária Ayra Candia, de 34 anos, não conseguem se afastar de uma das mais populares das doces tentações, o chocolate. “Como chocolate quando estou ansiosa, nervosa, triste ou feliz”, diz Ayra. A guloseima, como outros alimentos doces e gordurosos, ativa o centro neurológico do prazer, liberando uma substância chamada dopamina. A explicação para essa reação “festiva” de nosso cérebro à comida está no processo de evolução, que incentiva comportamentos que favoreçam nossa sobrevivência e procriação.
Quando nossa espécie vivia da caça e da coleta, período em que nosso cérebro se formou, fazia sentido consumir a maior quantidade de calorias possível de uma só vez. Nossos ancestrais não sabiam quando seria a próxima refeição. Muitas vezes, tendemos a repetir esse comportamento, mesmo que estejamos rodeados de comida. O que diferencia a espécie humana das outras, no entanto, é a capacidade de sentir sensações prazerosas com comportamentos absolutamente arbitrários, sem vantagem evolutiva alguma. “Em nosso cérebro, os antigos centros de prazer se conectaram com regiões superiores, relacionadas com a cognição e com a interação social”, diz o biólogo David Linden, autor do livro A origem do prazer (Campus Elsevier). “Essa conexão nos leva a uma complicação maravilhosa: temos muitas coisas que nos dão prazer, mas que não nos ajudam em nada do ponto de vista evolutivo.” É o caso dos jogos, das drogas, das compras e até de tecnologias como o celular. O problema ocorre quando esses comportamentos, evolutivos ou não, viram vícios.
O vício – seja em chocolate, como para Ayra, seja em celular, para Maya – é um comportamento que o indivíduo tenta controlar, mas não consegue, mesmo com muito esforço. É maior que uma questão de força de vontade. Pode estar ligado a um desequilíbrio do funcionamento do centro do prazer do cérebro. “O cérebro dos viciados apresenta mudanças físicas, químicas, elétricas e anatômicas”, afirma o biólogo Linden. Uma alteração comum é a diminuição da quantidade de dopamina liberada a cada estímulo, e, em muitos casos, as mudanças são favorecidas por fatores genéticos. “A genética pode tornar as pessoas mais suscetíveis a uma dificuldade de se controlar em geral ou apenas diante de um comportamento específico”, afirma o psiquiatra Hermano Tavares, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Isso significa que quase todos corremos risco de exagerar, numa coisa ou noutra. Se a genética dá um empurrão para a dificuldade de controlar os impulsos, pelo menos outros dois fatores influenciam na perda efetiva de controle. O primeiro é o ambiente a nosso redor. Alguém pode ter disposição ao alcoolismo, mas, se crescer sem contato com bebidas, diminuem suas chances de desenvolver o vício. O ambiente influencia também em outras situações. Como no caso da publicitária Joanna Moura, que trabalhava perto de um shopping center, almoçava todo dia na área de alimentação e não conseguia sair do prédio de mãos abanando. Os valores não eram altos. Um dia era uma roupa, noutro uma bijuteria. No final do mês, o extrato bancário no vermelho não deixava dúvidas sobre o estrago. Cheia de itens que nem sequer usava e com dificuldades para economizar, Joanna decidiu passar um ano sem fazer compras e transformou sua briga pelo autocontrole em um blog. Ela diz que ainda vai ao shopping, mas hoje se orgulha de sair sem sacolas.
O segundo fator que influencia o desenvolvimento de um comportamento impulsivo é o estresse. Mais do que uma condição psicológica, trata-se de um fenômeno biológico que envolve a secreção de hormônios nas glândulas suprarrenais, que alteram o funcionamento do centro do prazer no cérebro. O desequilíbrio aumenta nosso desejo pelas tentações e nos expõe ao risco de ceder. “Todos temos situações de estresse, mas vivê-lo de forma crônica diminui o limiar para tomarmos uma ação”, diz a psicóloga Liliana Seger, coordenadora do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas (HC). “Em cidades como São Paulo, onde as pessoas já não têm o controle das circunstâncias, é fácil perdê-lo.”
Foi o que aconteceu com o corretor de seguros Gilberto Kido, que procurou o HC porque não conseguia controlar a própria raiva. Especialmente no trânsito caótico da capital paulista. “Era só uma pessoa me fechar que eu já xingava”, diz Kido. “E, se ela respondesse, já saía do carro e partia para a briga.” Graças ao comportamento explosivo, ele colecionou machucados e suas relações familiares foram abaladas. Quando percebeu que o próprio filho, de 22 anos, imitava seu comportamento ao volante, decidiu procurar ajuda. Recebeu o diagnóstico: transtorno explosivo intermitente. Hoje, um ano depois do tratamento, Kido ainda respira fundo no trânsito, mas aprendeu a controlar suas reações. O importante, em casos como o dele, não é tentar suprimir a raiva, mas conseguir moderar o comportamento depois que ela aparece. Com seu autocontrole aprimorado, Gilberto Kido tenta agora melhorar suas relações familiares, especialmente o diálogo com a filha de 18 anos.
Seu exemplo mostra como nosso sistema de autorregulação é fundamental para nossos laços com outros indivíduos. Os primatas são seres sociais, que precisam controlar a si mesmos para se dar bem com o resto do grupo. É em nome da comunidade que nós, seus descendentes, desobedecemos aos próprios instintos. Por isso, o individualismo das sociedades modernas e urbanas representa um obstáculo a mais para nos mantermos na linha, ao romper com limites impostos pela interação com outras pessoas. Como a capacidade de impor limites a nós mesmos foi fundamental para nossa vida em grupo, o distanciamento dos outros pode prejudicar nossas habilidades sociais. “Em sociedades mais individualistas, como a nossa, estamos mais vulneráveis a ter problemas de autocontrole”, afirma o escritor Daniel Akst.
Além de melhorar relacionamentos, desenvolver o autocontrole pode proporcionar uma qualidade de vida superior. Cerca de 15% dos adultos no Brasil fumam, e grande parte apenas por não resistir ao apelo do cigarro. Quase a metade dos brasileiros cede às tentações da comida e sofre com excesso de peso. Cerca de 10% das famílias no país não conseguem adequar seus gastos à renda e têm dificuldades para saldar dívidas. A falta de autocontrole pode ser vista como um grande problema de nosso tempo. Ela contribui para aumentar as taxas de divórcio, a violência doméstica, a incidência de crimes, a obesidade e o tabagismo. “Ter autocontrole é conseguir tomar decisões boas no longo prazo, mas não no curto”, diz o psicólogo Robert Kurzban, autor do livro Why everyone (else) is a hypocrite (Por que todo mundo – menos eu – é hipócrita, em tradução literal). “Mas nem sempre as pessoas querem olhar para o longo prazo. Elas querem curtir a vida.”
O grande desafio, quaisquer que sejam nossos impulsos pelo prazer, é transformar a resistência à tentação em hábito. “Quando fazemos algo com regularidade, precisamos de menos força de vontade para continuar fazendo”, diz o psicólogo Baumeister. É aconselhável também concentrar-se num objetivo por vez. Como nossa capacidade de autocontrole é limitada, dividi-la entre dois alvos pode significar não acertar nenhum – uma dieta tem menos chances de sucesso se tiver de competir com outra missão pessoal, como ir diariamente à academia. Outro elemento importante para melhorar nosso controle é admitir que não podemos ganhar sempre: precisamos lidar com as falhas. Segundo os especialistas, se conseguirmos vê-las como exceção, elas não prejudicarão nosso progresso.
A boa notícia é que alguns dos hábitos saudáveis, como fazer exercícios, podem nos ajudar a diminuir o impulso por comportamentos indesejáveis. Eles nos ajudam a obter prazer sem cair na armadilha de nos viciarmos em apenas uma fonte. “A noção de dividir seus prazeres pela vida – em vez de ter um só grande prazer – é interessante”, diz David Linden. “Você vai ao bar e bebe dois drinques. Faz sexo. E corre no dia seguinte. Depois medita. Você tem todos os prazeres, mas nenhum chega a ser seu vício.” Segundo as últimas pesquisas, a meditação parece ter ainda mais benefícios. “Há cada vez mais evidências de que o autocontrole aumenta conforme aumenta a consciência”, diz o psicólogo Michael Inzlicht, da Universidade de Toronto, no Canadá. “E a consciência aumenta com a meditação.”
Se, mesmo com todas as estratégias disponíveis, ainda não conseguimos acatar o compromisso que firmamos conosco, a solução é buscar uma saída inspirada em Ulisses, o herói da Odisseia, de Homero. Quando voltava para casa depois da Guerra de Troia, a nau de Ulisses navegava ao encontro de sereias. Ele então pediu aos marinheiros que o atassem ao mastro da embarcação e tapassem seus ouvidos com cera. O grande guerreiro temeu ceder ao encanto das criaturas, mas conseguiu ultrapassá-las e chegar são a seu destino.
O grande mérito de Ulisses foi reconhecer-se vulnerável à tentação e não confiar apenas em seu autocontrole. Talvez agir como ele seja a alternativa mais prudente diante dos múltiplos desafios do mundo atual. Desligar o acesso à internet, como fiz em vários momentos durante a produção deste texto, certamente foi melhor do que confiar em minha capacidade de evitar a tentação de escapar de uma tarefa profissional para navegar na web. Ao reconhecermos nossas fraquezas e nossos limites, não abrimos mão da responsabilidade por nossas ações. Apenas admitimos quanto nós e nossos impulsos são oponentes respeitáveis. Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles reconhecia o desafio que temos pela frente: “Considero mais corajoso aquele que supera seus próprios desejos do que aquele que conquista seus inimigos, porque a vitória mais dura é sobre nós mesmos.”
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