Fé?


Que é a fé?

Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes, não deixe de ler sobre a premissa da série.


[Raph] Por muitos anos a física experimental esteve sempre a anteceder a teórica: primeiro a natureza era observada, ocorriam experimentos, e somente depois os cientistas elaboravam teorias para os resultados. Recentemente, no entanto, a física têm também considerado teorias que se sustentam apenas em modelos puramente matemáticos, e ainda não puderam ser testadas – como a Teoria das Supercordas. Há físicos que dedicam suas carreiras a tais estudos, na esperança de que um dia possam se comprovar.

Há fundamentalistas que creem que a fé é “a única salvação”. Há também anti-teístas que consideram toda a fé praticamente um “veneno para a mente”. Todavia, parecem haver vários tipos e gradações de fé. Sto. Agostinho defendia o “crer para compreender, compreender para crer”. A fé raciocinada, conectada ao que podemos observar na natureza, e sem se aventurar desprevenida pela imaginação pura, parece ser a fé dos religiosos mais moderados.

Portanto: o que são esses vários tipos de esperança, de convicção, de fé?

[Del Debbio] A Fé, do latim Fides (Fidelidade) e do grego Pistia, é definido como a opinião de que algo é verdade sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que depositamos nesta idéia ou fonte de transmissão. A maioria dos anti-teístas possuem uma visão muito deturpada do que seja a palavra fé, associando-a à religiões dogmáticas ou à crença em seres ditos sobrenaturais, mas todas as pessoas possuem em maior ou menor grau este atributo, já que ele é vital para a manifestação de nossas vontades.

Na Kabbalah, a Fé é um atributo da esfera de Netzach, associado às Emoções. Ela se manifesta ao lado de Hod (a Razão, cujo atributo associado é a Vontade/Thelema) e Yesod (o Subconsciente, cujo atributo relacionado é a Imaginação/Imago). Esta tríade de sensações, aliada aos recursos materiais (Malkuth), define nossa capacidade de realização de uma ideia.

No diagrama simbólico da Árvore da Vida, sempre que pensamos em algum projeto, seja ele qual for, em primeiro lugar precisamos imaginar o que queremos. Quando maiores nossos conhecimentos, imagens, sensações e experiências, maior o leque de opções que temos para nossas escolhas. Este é o primeiro passo.

Em segundo lugar, temos de ter a Vontade para realizar nosso desejo, caso contrário ele deixa de ser um desejo e se torna um devaneio etéreo. Este é um atributo da esfera da Razão (Hod). A razão vai nos guiar através de dezenas ou centenas de trajetos possíveis, de desvios e possibilidades, mantendo-nos firmes em nossas escolhas racionais. De nada adianta desejarmos alguma coisa se não for feito um esforço ativo de vontade para conseguí-la.

Finalmente, entra a fé. Temos todos os ingredientes e indicativos de que iremos realizar nosso projeto, mas ainda não o realizamos. Isso só sairá do reino das probabilidades até o reino das certezas quando efetivamente ocorrer. Até lá, mesmo o ateu anti-teísta mais fanático precisa deste elemento imaterial chamado fé, em maior ou menor grau, que irá propulsionar sua vontade. Nem que seja a fé em si mesmo.

A Fé não realiza nada sozinha
E aqui entra o ponto chave desta questão. A Fé, por si só, não realiza nada sozinha. Ela é o caminho até a finalização do desejo, passando pela Vontade e pela Imaginação. Quando estas três esferas de pensamento estão desequilibradas, a ação idealizada no Plano Mental não se manifesta no Plano Físico (Malkuth), perdendo-se em algum ponto do caminho.

Uma pessoa com Vontade e Fé, mas sem Imaginação não terá muitas opções de escolha. Uma pessoa com Vontade e Imaginação, mas sem Fé, desiste no meio do caminho por achar que não conseguirá fazer. Uma pessoa com Imaginação e Fé, mas sem Vontade, ficará aguardando um milagre acontecer.

Infelizmente, nesta cruzada ateísta-religiosa atual, o termo “fé” tem sido confundido com “crendice dogmática”, talvez propositadamente, de modo a separar os dois grupos ainda mais, talvez por ignorância do que o termo realmente signifique. Do outro lado, lideranças religiosas-dogmáticas transformaram o termo em “fazedora de milagres” para angariar incautos para suas causas. A resposta está no meio termo entre a Razão e a Emoção.

[Mori] A questão merece uma boa história que comemora neste início de ano exatos 100 anos. Em 1912, um meteorologista alemão propôs uma ideia absurda: a terra firme em que pisamos, de fato todos os continentes, estariam na verdade em movimento. Qualquer criança pode recortar um mapa-múndi e ver como a América do Sul e a África se encaixam quase perfeitamente, mas o alemão Alfred Wegener foi além e acumulou outras evidências, indo de formações rochosas a fósseis – animais há centenas de milhões de anos cruzavam o que hoje é o Brasil e a África sem um oceano Atlântico no caminho.

O que hoje é óbvio levou mais de meio século para ser aceito pela geologia, para nossos avós essas ideias ainda eram controversas, especialmente se um deles fosse geólogo. Não se sabia como os continentes poderiam ficar à “deriva”, literalmente como peças soltas, e Wegener sugeriu inicialmente que o movimento talvez se desse pela rotação da Terra, ou mesmo por uma precessão astronômica, no que estas ideias foram ecoadas pelo escritor HP Lovecraft. Cthulhu estava à frente da geologia da época.

Wegener morreu brava e prematuramente em busca de mais evidências, em uma duríssima expedição na Groenlândia. Jaz até hoje no local onde sucumbiu à exaustão em meio à neve. A despeito da veemente rejeição que encontrou, Wegener tinha convicção em sua teoria. Em certo sentido, podemos dizer que tinha fé, uma “fé raciocinada”, uma crença justificada.

É apenas a crença obstinada que pode levar uma pessoa a dedicar sua vida em esforços quase sobre-humanos em torno de uma ideia. Algumas das mais revolucionárias são justamente aquelas que em seu início podem não parecer muito razoáveis, e é a fé, por definição, que levará alguém a explorá-la a despeito da ausência de evidência ou mesmo do que aparente ser evidência contrária.

A fé por si só não leva a nenhum lugar
A fé, por outro lado, por si só não leva a nenhum lugar mais distante do que aqueles a que fomos nas épocas mais obscuras da Idade Média. Wegener não se resumiu a brincar com um mapa-múndi e a professar sua fé no movimento dos continentes; ele viveu e morreu observando o mundo e testando sua teoria. Morreu, de fato, sem nunca descobrir que também estava errado, pois o verdadeiro mecanismo que responde pelo movimento dos continentes foi aquele que finalmente levou à aceitação da “deriva”. Em verdade os continentes fazem parte de placas tectônicas, e os cientistas que rejeitaram a teoria de Wegener sobre continentes soltos pelo planeta em rotação não estavam completamente errados.

O equilíbrio entre a admiração e o ceticismo, entre a fé e a razão é o caminho do meio que é tão fácil de ser apontado, mas tão difícil de ser seguido. A ciência é, no entanto, e talvez surpreendentemente, uma das formas mais promissoras de trilhá-lo. O equilíbrio se pratica pela rejeição aos extremos, e poucas atitudes o demonstram melhor do que a humildade de reconhecer um erro. Isto é, se a fé pode nos guiar em momentos de pouca evidência a caminhos que apenas posteriormente confirmamos serem corretos, é a razão que pode nos levar a reconhecer que por vezes nossa fé pode estar simplesmente errada.

Há alguns meses escrevi sobre o professor Edward Nelson, que dedicou anos de sua carreira a uma ideia matemática revolucionária. Em 26 de setembro de 2011, ele a divulgou. Em alguns dias, sofreu enorme rejeição da comunidade acadêmica. Em 1 de outubro, Nelson escreveu a um de seus principais críticos: “Obrigado por apontar o meu erro”. Ele reconheceu seu erro e voltou atrás em sua ideia. Em ciência, é comum que isso ocorra. Mais comum do que em qualquer outra área do empreendimento humano.

Graças ao reconhecimento de seus erros fundamentando melhores acertos, graças a esta humildade fundamental, a ciência e a física em particular avançaram a passos tão largos que hoje podemos medir o movimento dos continentes em tempo real com a precisão de centímetros, vindicando a ideia central de Alfred Wegener à todo momento. E é justamente esse progresso vistoso que faz com que as teorias mais sofisticadas da física, como a das supercordas, sejam tão complexas e tão refinadas que mal se podem testá-las.

Sem testes, aceitá-las seria pura fé? Não exatamente, elas se fundamentam em uma série de outras teorias testadas à todo momento. Por outro lado, como toda ciência, elas sim envolvem tanto fé quanto razão, e o equilíbrio delicado entre elas arbitrado pelo mundo real mostrará onde estivemos certos – e onde estivemos errados.

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