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O sofrimento que sentimos nasce em nossa mente


Séculos antes do desenvolvimento da ciência ocidental, o Buda chegou ao entendimento de que o sofrimento origina-se na mente – no “olho”, por assim dizer, “de quem vê”.

Embora os termos que ele usou possam diferir daqueles dos biólogos, neurocientistas e psicólogos modernos, os insights que ofereceu são notavelmente semelhantes.

De acordo com as primeiras apresentações escritas dos ensinamentos do Buda sobre a Segunda Nobre Verdade, dukkha surge de uma condição mental básica, que, em páli, refere-se ao termo tanha, ou “desejar”. Os estudantes que fizeram as transcrições iniciais do páli para o sânscrito traduziram a causa como trishna, ou “sede”. Quando os ensinamentos foram trazidos para o Tibete, a causa foi traduzida como dzinpa, ou “impulso de agarrar”. 

À sua própria maneira, cada um desses três termos reflete um anseio mental fundamental em direção à permanência ou estabilidade – ou, visto de outra forma, uma tentativa de negar ou ignorar a impermanência.
O mais básico desses anseios é a tendência, muitas vezes descrita nos textos budistas como ignorância, de confundir “eu”, “outro”, “sujeito”, “objeto”, “bom”, “ruim” entre outras distinções relativas como tendo uma forma independente, inerentemente existente.

Em um nível muito simples, a ignorância poderia ser descrita por pensar que o rótulo de uma garrafa de molho picante é o molho em si. 

Da concepção de que pessoas, lugares e coisas são inerentemente sólidas e reais surgem dois impulsos igualmente poderosos. O primeiro, em geral chamado de desejo, é um anseio de adquirir ou manter o que determinamos como agradável. O segundo, conhecido como aversão, é um movimento na direção oposta, para evitar ou eliminar coisas que definimos como desagradáveis. 

Juntos, ignorância, desejo e aversão são chamados nos textos budistas de “os três venenos”, hábitos tão profundamente arraigados de como nos relacionar com as experiências que nublam ou “envenenam” a mente. 

Individualmente e em conjunto, dão origem a inúmeras outras atitudes e emoções – por exemplo, orgulho, perfeccionismo, baixa autoestima ou ódio contra si mesmo; o ciúme que sentimos quando um colega de trabalho recebe uma promoção que pensamos merecer; ou um nó de tristeza e desesperança que nos oprime quando lidamos com um parente doente ou idoso. Dessa forma, alguns ensinamentos budistas referem-se a essas atitudes e emoções como “aflições” ou “obscurecimentos”, porque limitam as maneiras com que interpretarmos a experiência – que, por sua vez, inibe o nosso potencial de pensar, sentir e agir.

Uma vez que desenvolvemos um sentimento de “eu” e “não eu”, começamos a nos relacionar com a nossa experiência em termos de “meu” e “não meu”; “o que eu tenho” e “o que eu não tenho”; e “o que eu quero” e “o que eu não quero”. 
Imagine, por exemplo, que enquanto você está dirigindo seu carrinho bem velho e decaído pela estrada, passe por você um carro novo e luxuoso – um Mercedes ou um Rolls-Royce que acabou de ser amassado em um acidente. Você poderia até sentir um pouco de pena do proprietário, mas não necessariamente sentiria qualquer ligação com o automóvel.

Poucos meses depois, vendo-se na posição de trocar o seu velho carro, vai visitar uma loja de carros usados e encontra disponível um Mercedes ou Rolls-Royce por um preço inacreditável. Na verdade, é o mesmo automóvel que você viu amassado no acidente meses antes, mas assim que assina o contrato, isso não importa. O carro é seu agora – e ao dirigi-lo de volta para casa, uma pedra bate e trinca o para-brisa. Tragédia! Meu carro está arruinado. Eu tenho que gastar para consertá-lo! É o mesmo carro que você viu amassado em um acidente alguns meses atrás, e então não sentiu nada ao passar por ele. Mas agora é o seu carro, e se o para-brisa estiver trincado, você sente muita raiva, frustração e talvez um pouco de medo. 

Então, por que simplesmente não paramos com isso? Por que não abrimos mão dos venenos e das suas “crias”? 

Se fosse assim tão fácil, é claro, todos nós seríamos Budas antes que pudéssemos chegar ao final desta frase! Segundo os ensinamentos do Buda e os comentários de outros mestres, o Três Venenos e todos os outros hábitos emocionais que surgem a partir deles não são, em si mesmos, as causas do sofrimento. 

Ao contrário, o sofrimento surge do apego a eles, que é o mais próximo que podemos chegar do significado essencial da palavra dzinpa em tibetano.
Conforme foi mencionado anteriormente, essa palavra é geralmente interpretada como um “impulso de agarrar”, mas também já ouvi a tradução de “fixação”, que penso ser a que mais se aproxima do significado profundo do termo.

Dzinpa é uma tentativa de fixar no tempo e no espaço o que está em constante movimento e mutação. “Tal como matar borboletas”, disse uma de minhas alunas. 

Quando perguntei o que queria dizer com isso, ela descreveu as pessoas que têm o hobby de caçar e matar borboletas, e depois fixar seus corpos em telas de vidro pelo puro prazer de olhar para a sua coleção ou mostrá-la aos amigos.

“Criaturas tão lindas e delicadas”, disse ela com tristeza. “Elas são feitas para voar. Se não voarem, não são realmente borboletas, não é?” De certa forma ela estava certa.

Quando ficamos fixados em nossas percepções, perdemos nossa capacidade de voar.

* * *
Nota do editor: este texto é um trecho do livro Alegre Sabedoria, de Yongey Mingyur Rinpoche, respeitado mestre de meditação tibetana. Ele foi traduzido e publicado pela editora Lúcida Letra, do Vitor Barreto, amigo e autor publicado no PapodeHomem. É parte de uma nova parceria, que nasce do respeito que temos pelo trabalho da editora, que promove um conteúdo de florescimento humano que o PapodeHomem apoia. 

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