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Um inverno sem mim: pequena digressão sobre a densidade do adoecimento (Coluna da APPOA)


 A confirmação de uma doença grave costuma ser o estopim de uma experiência intensa com o corpo com ressonâncias psicológicas e sociais

A confirmação de uma doença grave como câncer, por exemplo, costuma ser o estopim de uma experiência intensa com o corpo com ressonâncias psicológicas e sociais. Após um período de incertezas e expectativas, normalmente acompanhado de exames, consultas e informações, a realidade do diagnóstico se impõe à suspeita da enfermidade, abalando a unidade imaginária mas não menos essencial do Eu. Sob a mira da morte, vive-se um estado de desamparo que institui uma temporalidade de urgência à função do pensamento. Com a vida em risco, a existência é revisitada em seus momentos épicos e mesmo nos detalhes banais. Cada vez menos rara, a surpresa de uma doença grave tem-se tornado um acontecimento regular, não menos impactante por conta disso. Acontece com amigos, vizinhos, familiares e desconhecidos. Aconteceu comigo.

Na leitura empreendida em O mal-estar na civilização, Freud apresenta três fontes de sofrimento que atingem a espécie humana e a cada um de nós em sua singularidade: o mundo externo associado à força da natureza, a decadência do corpo e o relacionamento com o semelhante. Coagido pela exigência de ser e diante da impossibilidade de domínio absoluto sobre esses fenômenos, resta o trabalho individual e coletivo de criar estratégias de sobrevivência que operem como contraponto da fragilidade da vida humana. Por ser permanente e incompleto em sua estrutura, o mal-estar põe em suspenso o ideal da felicidade que, a depender das circunstâncias, não deveria ser encarada unicamente como indício de primitivismo emocional. De alcance universal, a formulação freudiana dá estatuto conceitual e caráter sensível aos tormentos da deriva existencial sem associá-los a um funcionamento psicopatológico. 

Como seres de linguagem, inventamos diferentes formas para orientar, projetar e descrever nossa presença e nossa ação no mundo. Podemos, por exemplo, descrever o inverno como uma experiência de aconchego ou de solidão, na mesma lógica podemos nos situar de maneira mais ou menos apreensiva diante de uma enfermidade. Marcados pelo acontecimento de sermos os únicos seres vivos cientes da finitude e de termos, ao nascer, um organismo imaturo e que, por isso, não nos fornece a possibilidade de autopreservação de forma autônoma, nossa condição de sobrevivência inicial depende de ações específicas daquele(a) que nos acompanha e que, da mesma forma que nós, debate-se no hiato entre a utopia da plena liberdade e a necessidade de vínculo que edifica as realizações civilizatórias. Mais do que queremos admitir, esse outro (singular ou plural) nos coloca em causa e é arrastado para dentro de nós constituindo uma dimensão de interioridade psicológica que fala em nós, embora não por nós. 

Nessa linha de argumentação e sem propor nenhuma hierarquia, o fato é que natureza, corpo-organismo e semelhante são matérias-primas concretas do processo que nos humaniza. Contudo, é preciso ressaltar que a ocorrência de uma doença grave não cabe na definição de mal-estar, ao incluir perdas funcionais decorrentes da enfermidade cujo quadro clínico atualiza o destino do corpo ser, desde sempre, fadado à dissolução. O adoecimento físico evoca o estado de desamparo cujos efeitos mostram-se na evidência da fragilidade biológica e na fenda narcísica que se abre no eu e na imagem de si próprio. Se, por um lado, a definição diagnóstica permite atribuir uma causa à doença física e, por consequência, propor uma terapêutica, por outro, algo resta inarticulável ao sujeito, sendo vivido, muitas vezes, sob a forma de angústia, efeito de algo que retorna ao mesmo lugar: por que comigo? Por que agora? 

Recolhida em si e envergonhada da escolha forçada de enfermo, a pessoa doente mostra um certo pudor quando instada a narrar sua enfermidade. Enquadrados como num palco, paciente, familiares e equipe de saúde inventam personagens e improvisam cenas no quarto do hospital numa cumplicidade não declarada para dar conta do emaranhado de demandas, protocolos e desencontros que circunscrevem o cuidado ao corpo e à própria pessoa. Pitadas de comédia, drama e terror se juntam ao cotidiano da internação hospitalar e, quando bem-sucedidas, dinamizam e desestabilizam a rigidez das prescrições, das relações de poder e da parcela de embaraço e desconhecimento inerentes ao convívio entre o paciente e a equipe. Estes modos de intervenção são como anteparos simbólicos frente ao caráter invasivo e às manifestações do corpo adoecido, viabilizando que soros, seringas, drenos, comprimidos e sondas entrem e saiam do organismo numa operação necessária de diluição das fronteiras entre o somático e o psíquico. Nesse ambiente de espera e de esperança, um pensamento não consegue ser afastado e costuma insistir: como seria o mundo – o meu mundo – sem mim? Apostando na vida, finalmente consigo devanear um pouco sobre… como seria um inverno sem mim?

(*) Psicanalista, doutor de em Psicologia Social (UFRGS), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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