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Banalidade do Mal: porque absurdos não nos surpreendem mais


 Escrito por Breno França na  "Tecla SAP #11" da revista Papo de homem



Pegue uma dose de violência, misture pouco a pouco com o sensacionalismo e refogue na sociedade do espetáculo. Rende porção para uma nação inteira

No último artigo da Tecla SAP abordamos um conceito chamado False Flag que basicamente explica como pessoas em posição de poder são capazes de criar falsos inimigos através de uma velha tática militar nos fazendo ter medo e, consequentemente, flexibilizando nossos critérios a respeito de ações radicais ou extremas.

Hoje – não que isso seja uma continuação – vamos falar sobre um conceito que explica como ações radicais podem acabar se naturalizando perante nossa percepção se não tomarmos determinados cuidados. Conceito denominado apropriadamente de Banalidade do Mal.

Acusação

Em 1960, após longa investigação e busca, uma espécie de polícia secreta de Israel, chamada Mossad, encontrou na Argentina um ex-funcionário nazista chamado Adolf Eichmann. Responsável por gerir a logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e campos de extermínio durante o período da Segunda Guerra Mundial, ele foi capturado e deportado para Israel onde aguardou 11 meses até que o seu julgamento começasse.

Acusado de 15 crimes de guerra, incluindo crime contra a humanidade, Eichmann foi condenado à pena de morte e acabou sendo enforcado em 1º de junho de 1962. O julgamento, porém, foi bastante polêmico. Primeiro porque, apesar de prevista na legislação israelense há muito tempo, esta foi a primeira vez que alguém foi condenado à morte naquele país e, segundo, porque o julgamento foi extremamente explorado pela mídia internacional com o aval da justiça do país.

Durante o julgamento, Eichmann ficava numa cabine a prova de bala e de som.

Cadeias de rádio, jornais, emissoras de televisão e revistas do mundo inteiro mandaram seus correspondentes para realizar a cobertura in loco do evento, entre eles a filosófa e teórica-política alemã Hannah Arendt, pela revista The New Yorker.


Arendt acompanhou o julgamento de perto e além de matérias para a revista, aproveitou a oportunidade para elaborar um novo conceito apresentado em 1963 por meio de seu livro Eichmann em Jerusalém, que segundo ela mesma, se tratava de "um relato sobre a Banalidade do Mal", além de "uma análise do indivíduo Eichmann."

A ideia que nasceu durante o julgamento e foi sendo elaborada até virar livro se dava por conta da naturalização que o líder nazista fazia das atrocidades cometidas por ele. Na ocasião, resumindo bastante a história, Eichmann nunca negou que teria, de fato, cometido tais crimes, mas se considerava "inocente no sentido das acusações". Como? Para Eichmann, ele estava apenas cumprindo ordens.
Julgamento

A postura estranha de Eichmann enquanto reú de um julgamento chamou a atenção da filósofa. Segundo ela, ele não passava de um homem medíocre, comum, incapaz de pensar nas consequências dos atos que cometeu e que, ao mesmo tempo que não nutria ódio pelo povo judeu, também não se arrependia de seus atos, o que levou Arendt a concluir que o nazista realmente não se sentia culpado.

Para muito além da discussão normal sobre se Eichmann era culpado ou não (para ela, ele era), havia, na visão de Arendt, uma questão maior a ser discutida ali. Uma questão a respeito da impessoalidade do indivíduo que comete tal mal, de uma suposta separação entre as atitudes que uma pessoa toma por vontade própria e aquelas cujo as circunstâncias lhe 'obrigam' a tomar, de uma instauração de um mal sistêmico que se manifesta através de pessoas que, assim como Eichmann, se negaram ao direito de pensar, passando a obedecer toda e qualquer ordem, transformando-se em verdadeiros robôs a serviço de um sistema, este sim, verdadeiramente maléfico.

Segundo essa perspectiva, "o indivíduo Eichmann" não é visto como um monstro ou um maníaco psicopatológico antissemita, mas apenas como um funcionário zeloso que sem ver alternativas, em busca de uma ascensão profissional e abdicando de sua capacidade de fazer julgamentos morais, não foi capaz de resistir às ordens que recebeu e tampouco de perceber sua contribuição para um mal generalizado.

Difícil, né?

Sentença

A publicação do livro de Arendt gerou muita polêmica.

Em grande parte porque, em outros trechos da obra, Arendt, apesar de judia, levanta a hipótese de que alguns líderes religiosos poderiam ter tomado outras atitudes na ocasião do Holocausto que fossem capazes de salvar vidas, o que foi considerado por muitos como uma culpabilização das vítimas pelo que aconteceu.


Link Youtube - trecho do filme sobre Hannah Arendt de mesmo nome, 2012.

Mas também, é preciso dizer, diversos teóricos impulsionados pela questão acima ou não, se voltaram contra Arendt, acusaram-na de estar contribuindo para a absolvição moral de um nazista, além de apontarem para a ignorância (voluntária ou não) da filósofa a respeito de um perfil psicológico, posteriormente melhor desenvolvido pela ciência, de um psicopata que, assim como Eichmann, não sente remorso ou culpa. Ou seja, uma crítica direta ao principal pilar da argumentação da alemã.

Isto posto, o que nos interessa aqui hoje é que, graças a reflexão provocada por ela a partir do episódio, o conceito de Banalidade do Mal foi explorado e ainda é reconhecido por uma série de linhas de pesquisa que atentam para o seguinte problema: indivíduos que se abdicam do direito de pensar e refletir a respeito das ordens e informações que recebem, podem estar colaborando para que um mal sistêmico se instaure.

Atos nos quais esse mal se manifesta, que hoje podem ser traduzidos desde crimes bárbaros até atos de corrupção generalizada, não podem perder jamais a capacidade de nos afetar, pois é preciso que eles provoquem reflexões e, consequentemente, mudanças. O que vai justamente na contramão da espetacularização da violência que vemos tantas vezes hoje, dado que, sensacionalizar atos desse tipo é o primeiro passo para banalizá-lo, num sistema onde precisamos impressionar para conseguir cada vez mais audiência.


Alguém aí já viu O Abutre, 2014?

Conforme a sensação de anestesia diante das barbaridades toma conta dos indivíduos, conforme o sistema mostra que estes indivíduos são impotentes diante das injustiças que lhes acometem e conforma cada um de nós passa a não mais se levantar contra aquilo que julgamos errado, cresce a tendência de que esse "mal" se banalize e que, através do mecanismo da Janela de Overton, caminhemos para que cada vez mais "mal" tenha espaço para dominar. O que pode ser resumido por um ditado já bem conhecido:


"Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados."

Edmund Burke

***

  • Tecla SAP é uma série de autoria de Breno França publicada quinzenalmente às quintas-feiras que se propõem a explicar ou traduzir conceitos complexos que estão presentes nas nossas vidas, mas não sabemos ou reconhecemos.publicado em 16 de Março de 2017.

Breno França
Novo editor do PapodeHomem, é (quase) formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.

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