Pular para o conteúdo principal

O filósofo do martelo


O filósofo do martelo na academia


"Eu lamento agora que naqueles dias eu ainda não tinha coragem (ou imodéstia?) para permitir a mim mesmo, de todas as formas, minha própria língua individual..."

Estas palavras são de Friedrich Nietzsche (1844-1900), em tradução livre, do seu "Tentativa de Autocrítica", opúsculo escrito por ele como autocrítica, em 1886, ao seu livro "Nascimento da Tragédia" (primeira edição em 1872). A edição de 1886 ganhou como acréscimo ao título o subtítulo "Helenismo e Pessimismo".

Nietzsche foi minha primeira paixão na faculdade de filosofia da USP. Na época, recém-saído da medicina e em formação para ser psicanalista, o que nunca aconteceu, eu colocava em diálogo Nietzsche e Freud.

O filósofo do martelo me é inesquecível e continuo pensando com o martelo até hoje. Vocação é destino. Este trecho específico carrega em si muito do que Nietzsche significa para um filósofo profissional como eu, em constante mal-estar com o que a vida universitária se transformou, em épocas de produtividade industrial do ensino superior.

A fala de Nietzsche vai de encontro ao modo como somos formados, não sem razão, nas boas faculdades de filosofia: somos formados para não sermos originais. Hoje, entendo que qualquer originalidade possível em filosofia é algo conquistado a duras penas, assim como a santidade ou os movimentos precisos de uma dança --metáfora cara ao filósofo do martelo.

Lembro-me de uma das primeiras aulas em que um dos grandes professores que tive nos disse algo assim: "Você não está aqui para achar nada, antes de achar algo estude, e descobrirá que muita gente já pensou o que você pensa, e muito melhor do que você, antes de você."

Esta dureza acaba por fazer de nós pessoas menos opinativas e mais rigorosas, e isso é sem dúvida fundamental. Esta é a diferença entre pensar filosoficamente e pensar como senso comum. Vale lembrar que do ponto de vista da filosofia, as ciências humanas em geral são senso comum.

Rigor nada tem a ver com o que a academia se tornou com o passar dos anos: um antro de política lobista e de burocracia da produtividade a serviço da morte do pensamento. A universidade está morta e só não sente o cheiro do cadáver quem tem vocação para se alimentar de lixo. Fosse Kafka vivo e escrevesse um conto sobre nós, acadêmicos, nos colocaria com cara de ratos.

Imaginem Nietzsche preenchendo o currículo Lattes, uma plataforma informática que supostamente democratiza o acesso à produtividade da comunidade acadêmica, ao mesmo tempo em que normatiza e quantifica esta produtividade. Na prática, o Lattes serve para nos tomar tempo (sempre dá pau) e acumular platitudes e repetições que visam a quantificação de um quase nada de valor.

Agora imaginem Nietzsche às voltas com relatórios anuais da Capes, que junto com o Lattes, institucionaliza e quantifica esta mesma produtividade de um quase nada de valor.
Não existiria filosofia se nossos patriarcas, de Platão a Nietzsche (para citar dois grandes), tivessem que preencher o Lattes, fazer relatórios Capes ou serem "produtivos". Todos seriam o que, aos poucos, nos transformamos: burocratas mudos da própria irrelevância. 

Analfabetos do pensamento.

Uma das formas de sobreviver a este processo de produtividade de massa é obrigar nossos alunos a pesquisar aquilo que não querem, de uma forma que não querem, a fim de garantir verbas institucionais de pesquisa em grande escala. Esmagamos a criatividade e as intenções dos alunos fazendo deles uma infantaria estatística. A universidade mente: quer formar rebanhos dizendo que defende a liberdade de pensamento.

Lutamos dia a dia para conseguirmos sobreviver aos montes de formulários e demandas do mundo dos ratos. A universidade aos poucos sucumbe aos efeitos colaterais de um mundo que, como diria Nietzsche, vomita "ideias modernas". Os processos de democratização do saber, como suspeitava nosso filósofo, são processos de produção de nulidades em grandes quantidades.

Mais do que nunca é urgente sermos corajosos e imodestos para acharmos nossa própria língua individual.


Luiz Felipe Pondé

Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa) e "Guia Politicamente Incorreto da Filosofia". Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CONVERSAS ANÔNIMAS! VOCÊ, SEU NARCISISTA!!!

Gostaria de falar sobre esta postagem: Nada mais comum que uma postagem cheia de senso comum e conhecimento vulgar com uma compreensão enviesada do mundo. Tudo bem até aí? Só que não. Uma postagem assim além de reforçar o senso comum, lhe da uma validade. O que é ERRADO! A afirmação de que todo psicopata é narcisista é "FALSA"! E induz ao erro e preconceitos. Primeiro que não explica de que narcisismo se esta falando , segundo porque também não explica que o termo “psicopata” não é um diagnóstico válido descrito! Nem   está incluído no CID-10 e nem mesmo no DSM-5 ou em qualquer outro manual! Existe um natural "Narcisismo saudável", uma fase do comportamento que visa atender as próprias necessidades de forma equilibrada e respeitosa, sem prejudicar ou explorar os outros. Uma pessoa com narcisismo saudável tem uma autoimagem positiva, uma autoestima elevada, uma autoconfiança adequada e um nível aceitável de auto importância. O narcisismo saudável pode ser visto com

TERAPEUTAS... são imperfeitos.

  “Médicos são tão f*didos quanto nós”: como Shrinking quer descomplicar a terapia Nova série da Apple TV+ acompanha psicólogo que decide abandonar as “boas práticas” e se mostrar mais humano para seus pacientes 5 min de leitura MARIANA CANHISARES 26.01.2023, ÀS 06H00 ATUALIZADA EM 31.08.2023, ÀS 12H12 No conforto — ou seria desconforto? — da terapia, é rápido presumir que o psicólogo do outro lado da sala tem sua vida em ordem. Esta é, afinal de contas, uma relação unilateral: um revira os dramas e dilemas do passado, do presente e do futuro, enquanto o outro ouve, pergunta e toma notas. Não há propriamente uma troca — ao menos não no sentido isométrico da expressão. Porém, essa visão, corroborada por vezes pela cultura pop, não corresponde à realidade, como analisou, entre risos, o produtor, roteirista e diretor  Bill Lawrence  ( Ted Lasso ), em entrevista ao  Omelete .  “Nos Estados Unidos, quando se faz uma série sobre médicos ou terapeutas, geralmente eles não são pessoas falhas o