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Tradução de Miguel Duclós

Cartas de Nietzsche – 1887

Carta 1

Nice, 7 de Março de 1887 – Carta a Heinrich Köselitz (Peter Gast)
Caro amigo,
[...]Dostoievsky veio a mim da mesma maneira que antes veio Stendhal: por completo acidente. Um livro casualmente folheado numa loja, um nome que eu nunca tinha ouvido falar antes – e então a súbita consciência que alguém tinha se encontrado com um irmão.
[...]quatro anos na Sibéria, trancafiado, entre insensíveis criminosos. Este período foi decisivo. Ele descobriu o poder da sua intuição psicológica; e mais, seu coração sensibilizou-se e tornou-se profundo neste processo. Seu livro de memórias deste período, La maison des morts [A Casa dos Mortos] é um dos livros mais “humanos” já escritos. [...] Eu primeiro li [...] duas novelas curtas ["A proprietária"] e ["Notas do subterrâneo" ]: o primeiro uma espécie de música estranha, o segundo uma verdadeira pincelada de gênio psicológico – uma assustadora e cruel imitação do délfico “Conhece-te a ti mesmo”, mas lançada com tamanha audácia espontânea e alegria em seus poderes superiores que fiquei profundamente embevecido de contentamento. [...]

Carta 2

Nice, 02 de março de 1887, carta a Theodor Fritsch
Caro senhor,
Com esta carta respondo ao senhor três assuntos tratados na sua correspondência, obrigado pela confiança com que me permite passar a vista pela confusão de princípios que situam-se no coração deste estranho movimento. Todavia eu peço, no futuro, que não me envie mais estas cartas [anti-semitas]: eu receio, afinal, pela minha paciência. Acredite-me: este abominável “querer dizer” de barulho diletante acerca do valor de pessoas e raças, esta sujeição à “autoridades” que são completamente rejeitadas com frio desprezo por qualquer mente sensível ( tal como E. Dühring, R. Wagner, Ebrard, Wahrmund, P. de Lagarde – quem dentre esses é mais qualificado, mais injusto, em questões de história e moralidade) estas falsificações permanentes e absurdas,estas racionalizações de conceitos vagos como “germânico”, “semita”, “ariano”, “cristão”,”alemão” – tudo isso pode acabar por me fazer perder a moderação e me fazer sair da irônica benevolência com a qual até aqui tenho observado as virtuosas veleidades e farisaísmos dos alemães modernos.
- E, por último, o que você acha que eu sinto quando o nome de Zaratustra sai da boca de anti-semitas?…
Humildemente, seu Dr. Fr. Nietzsche

Carta 3

Cannobio, Villa Badia, 14 de Abril de 1887 – Carta a Franz Overbeck
Caro amigo, não há nada mais estagnante e desencorajador para mim do que viajar na Alemanha de hoje para ver de perto várias pessoas sinceras que acreditam que tomam uma “atitude positiva” em relação a mim. Por enquanto, está lhes faltando qualquer compreensão acerca de mim. E se meu cálculo de propabilidade não me falhar, não vai haver nenhuma diferença antes de 1901. Eu acredito que as pessoas simplesmente me tomariam por louco se eu as deixasse saber o que eu mesmo acho de mim. [...] ( Este inverno eu me aprofundei na literatura contemporânea, então posso agora dizer que minha posição filosófica é de longe a mais independente possível, entretanto, muito me sinto como o herdeiro de vários milênios. Europeus contemporâneos não tem a menor noção das decisões assustadoras para as quais minha essência se volta, ou do círculo de problemas com os quais estou envolvido. – Ou comigo está sendo preparada uma catástrofe cujo nome eu sei, ainda que não expresse.
Seu fiel amigo, N.

Carta 4

Venice, 22 de Outubro de 1887 – Carta a Hans von Bülow
Apreciado senhor, Houve um tempo que que você decretou a sentença de morte para uma obra musical minha, a mais bem merecida sentença in rebus musicis et musicantibus [em matéria de música e músicos] . E agora, apesar de tudo, eu ouso enviar a ti outra coisa, – um Hino à Vida – , que eu quero sobretudo que permaneça vivo. Será cantada um dia, seja num futuro próximo ou remoto, em minha memória; em memória de um filósofo que não viveu o seu presente, e que não queria realmente vivê-lo. Ele merece isso? Além do mais, pode ser possível que nos últimos dez anos, eu tenha aprendido algo como músico também. Muito agradecido, apreciado senhor, como sempre e inalteravelmente,
Dr. Fr. Nietzsche

Carta 5

Nice, 02 de Dezembro de 1887 – Carta a Georg Brandes
Estimado senhor,
[...] Na minha escala de experiências e eventos os mais raros, distantes e puros predominam sobre os medianos. Eu também tenho, (para falar como músico, que de fato sou) um ouvido apurado para os quarto tons. Finalmente – e não tenha dúvida que é isto acima de tudo que torna meus livros tão obscuros – eu tenho desconfiança da dialética, e mesmo das razões. Que um homem esteja ou não pronto a chamar algo de verdadeiro parece para mim depender do nível de sua coragem. (Somente raramente eu tenho coragem de afirmar o que sei atualmente)
Sua expressão “radicalismo aristocrático” é muito apropriada. É, se me permite dizer, de longe a coisa mais perspicaz que já disseram sobre mim.[...]
Você é músico? Neste momento mesmo um trabalho meu para chorus e orquestra está em cartaz. De todas as minhas composições musicais, esta é a que pretendo que sobreviva e seja cantada um dia em “minha memória”, considerando, é claro, que é o resto de mim sobreviva. Você está vendo que esses pensamentos póstumos ocupam minha mente. Mas um filósofo como eu é como uma tumba, selado parante a vida. Bene vixit qui bene latuit ["Bem viveu quem bem se escondeu" - Horácio] – isto era o que estava escrito na lápide de Descartes. Um epitáfio, se é que houve um!
[...] Eu desisti de meu cargo de professor. Estou quase cego.

Carta 6

Nice, 14 de dezembro de 1887 – carta a Carl Fuchs
Caro e ilustre amigo,
Durante os últimos anos a veêmencia das minhas vibrações internas foi assustadora. Agora que eu tenho de mudar para uma nova e elevada forma de expressão, preciso antes de tudo de um novo senso de alienação, uma despersonalização ainda maior.
Na Alemanha reclamam muito da minha “excentridade”. Mas, como não se sabe onde repousa meu centro, torna-se difícil saber onde ou quando eu fui “excêntrico”. Que eu seja um filólogo, por exemplo, significa que estou fora do meu centro ( o que por sorte não quer dizer que eu seja um filólogo fraco ). Da mesma forma, eu agora considero que ter sido um wagneriano foi uma excetridade. Foi uma experiência altamente perigosa; agora que estou ciente isso não me arruina. Sei também o significado que isso teve para mim – foi o mais severo teste de caráter que passei.
[...] Ninguém passou perto de ter a coragem e a inteligência para me revelar aos meus estimados alemães. Meus problemas são novos, meu horizonte psicológico assustadoramente largo, minha linguagem forte e clara. Talvez não haja nenhum livro escrito em alemão que seja tão rico de idéias e tão independente quantos os meus. [...]

Carta 7

Nice, final de dezembro de 1887 – Rascunho de carta a Elisabeth Förster-Nietzsche
Neste meio tempo eu vi a prova, preto no branco, de que o Förster ainda não cortou suas ligações com o movimento anti-semita. Desde então tenho dificuldade em manter o carinho e proteção que sempre nutri em relação a você. [...] A nossa separação é aqui decidida da maneira mais absurda. Você não compreendeu nada da razão pela qual estou no mundo? Isto foi tão longe que agora preciso me defender da cabeça aos pés das pessoas que me confundem com essa canalha anti-semita; depois que minha própria irmã, minha ex-irmã, e depois que Widemann deu impulso para essa confusão, a mais medonha de todas. Depois que li o nome de Zaratustra na correspondência desses anti-semitas, minha contenção chegou ao fim. Estou agora na posição de urgente defesa contra o partido do seu esposo. Estas malditas deformações anti-semitas não devem manchar meu ideal!

Carta 8

Natal de 1887, carta a Elisabeth Förster-Nietzsche
[...] Você cometeu uma das maiores estupidezes – para si mesma e para mim! Sua associação com um líder anti-semita expressa um desconhecimento de todo o modo de vida que me preenche agora e sempre com ira e[...] É uma questão de honra para mim ser absolutamente isentado de toda associação com o anti-semitismo, isto é, me contrapondo a ele, como tenho feito nos meus escritos. Eu recentemente fui perseguido com cartas e prospectos anti-semitas. Minha repulsa em relação a este partido (que gostaria muito bem de se beneficiar de meu nome!) é tão declarada quanto possível, mas a relação com Förster, como o efeito colateral de meu antigo editor, este Schmeitzner anti-semita, sempre traz de volta aos sectários deste desagradável partido a idéia de que eu pertenço a eles, afinal. [...] Isto estimula uma desconfiança contra o meu caráter, como se publicamente eu condenasse algo que privadamente endosasse. Como não posso fazer nada em relação a isso, e o nome de Zaratustra tem sido muito usado na correspondência dos anti-semitas, quase fiquei doente várias vezes. [...]

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