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Memória... uma construção diária


As falsas lembranças nos tribunais


O especialista em psicologia forense Saul Kassin, professor do Williams College, nos Estados Unidos, fala da importância de preparar o poder judiciário para falhas nas memórias dos interrogados

por Redação Galileu

Editora Globo

Nos últimos anos, foram descobertas, pelo mundo, dezenas de pessoas que acreditaram terem atuado ou sofrido crimes que não aconteceram – ou que não participaram. O mais famoso deles, o “assassinato de Teresa de Simone”, de 1979, teve seu desfecho correto somente no ano retrasado, na Inglaterra. Após 27 anos preso por ter confessado, com detalhes, o estupro e o homicídio da jovem, o inglês Sean Hogston foi inocentado por meio de análises de DNA, que provaram que o sêmen encontrado na vítima não pertencia a ele. 

Segundo a perícia britânica, Hogston tinha distúrbios psicológicos que resultavam na “síndrome de falsas memórias”: uma baixa capacidade de separar o real do imaginário. A princípio, todos os seres humanos seriam suscetíveis a produzir falsas lembranças. Porém, como foi possível notar no caso de Hogston, há um grupo mais vulnerável. Em geral, segundo estudos conduzidos por Elizabeth Loftus, psicóloga da Universidade da Califórnia e uma especialista na área, são “pessoas com mais lapsos de atenção, que possuem algum distúrbio mental e que pontuam baixo em testes padrões de inteligência”. 

Nos tribunais, a ciência das falsas memórias começou a se popularizar em 2003, ano em que o professor islandês de psicologia forense do King’s College, na Inglaterra, Gisli Gudjonsson, descreveu que a maioria das falsas confissões envolvia pessoas com problemas psicológicos, como falta de controle e percepções e memórias distorcidas. Mais tarde, em estudo complementar feito em 2007, a psicóloga americana Allison Redlich, da Universidade de Albany, constatou que 22% dos criminosos com problemas mentais seriam capazes de produzir falsos testemunhos e, muitas vezes, com detalhes impressionantes, como se tivessem participado do ato. Outros presos, sem nenhuma doença mental, teriam um risco de 12%. Os números sugeriam dois grandes problemas da justiça atual: a falta de diagnóstico psicológico em acusados e interrogatórios facilmente manipuláveis. 

O psicólogo forense americano Saul Kassin, professor do Williams College, nos Estados Unidos, concedeu uma entrevista a Galileu para comentar esses “problemas científicos” do sistema judiciário. Confira: 


Pesquisadores afirmam que as falsas memórias fazem parte da natureza humana. Todo mundo pode confundir alguns detalhes de eventos passados. Mas é possível traçar perfil da pessoa que é mais suscetível a ter essas memórias errôneas? 


Sim. Algumas pessoas são naturalmente mais maleáveis a sugestões que outros, logo, podem formar falsas memórias com mais facilidade. Crianças e adolescentes são mais suscetíveis que adultos, particularmente quando a fonte de “má informação” é um adulto. Estudos mostraram também que pessoas com capacidade intelectual baixa são mais suscetíveis que outros com maiores capacidades. 

Pesquisas mostram que pessoas com retardamento mental quase sempre respondem “sim” para questões principais – mesmo quando “sim” é obviamente incorreta, inapropriada ou até mesmo absurda. 

Mas é importante elucidar que enquanto pessoas são mais suscetíveis que outras, todos nós podemos nos tornar mais suscetíveis em circunstâncias. Pesquisas mostram, por exemplo, que pessoas normais se tornam mais suscetíveis quando estão bêbadas, ou quando estão sem dormir ou exausto. 

Editora Globo


Em um estudo feito na década de 90, você acusou estudantes inocentes de terem apertado uma tecla proibida, que quebraria o computador. Em algumas sessões, um confederado disse que havia testemunhado que viu apertarem os botões. Essa falsa evidência quase dobrou o número de alunos que assinou uma confissão escrita – 48 a 94% -, muitos dos quais internalizaram a crença na sua própria culpa. Como se dá essa “internalização da culpa”? 


O experimento que você se refere foi um que criamos para ver se imitando um fenômeno da vida real conseguiríamos provar um que pessoas inocentes não só confessam um crime sob pressão, mas também acreditam que o cometeram. 

No estudo de laboratório, assim como na vida real, pessoas se convencem por causa de um confronto com uma testemunha que diz ter visto o crime – e essas pessoas que estavam digitando rápido e não prestando atenção nos seus movimentos, podem não encontrar uma razão para duvidar do testemunho. 

O estudo foi replicado na Holanda, onde pessoas inocentes confessaram ter quebrado o computador mesmo quando eles sabiam que a confissão fosse lhes custar muito dinheiro. O problema ilustrado por esse estudo é que quando a policia mente para um suspeito inocente sobre evidencias, dizendo, por exemplo, que eles têm marcas de digitais na faca ou DNA na vítima, ou que falharam no teste de detecção – uma tática que é legal nos EUA – a pessoa inocente fica confusa. Logo começa a questionar a própria memória, e cogita ter sofrido um blackout ou que seu cérebro reprimiu essa coisa horrível que fez. Então, com ajuda da polícia, essa pessoa inocente tenta imaginar como fez isso, um exercício que faz esse brotamento da falsa memória parecer bastante real. Parece absurdo, mas há uma série de casos assim. 

Como a sociedade pode parar de incriminar pessoas inocentes? 


Acho que há 3 respostas. Primeiro, os governos devem proibir o uso de interrogatórios coercitivos ou altamente enganosos, que incluem técnicas como entrevistas muito extensas e com privação de sono, ameaças e mentiras sobre a evidência. Tudo isso faz com que o suspeito se sinta enganado e confuso. 

Em segundo lugar, os governos precisam oferecer proteção especial para as populações vulneráveis - como crianças e pessoas que são mentalmente retardadas, pessoas que não conhecem seus direitos ou não entendem completamente as conseqüências das declarações que estão sendo solicitados a fazer. 

Em terceiro lugar, e isso eu acredito ser o mais importante, é que deveria ser obrigatório que a polícia grave vídeos dos suspeitos em todas as entrevistas e todos interrogatórios para que os juízes e jurados, mais tarde, em tribunal, possam não só ver o que a confissão parece, mas como foi obtida. 


A justiça está preparada para tratar de casos envolvendo falsas memórias? 

Acho que a ciência psicológica está mais no lugar de informar a polícia, os tribunais e os autores de lei como obter confissões de criminosos sem colocar uma pessoa inocente em risco. Alguns anos atrás as práticas de interrogatório foram reformadas na Inglaterra om grandes sucessos. Esse sistema pode ser usado como modelos em todos os lugares. É importante para as pessoas saberem que quando uma pessoa inocente é induzida a confissão, ele não é a única vítima de injustiça. As outras vítimas são aqueles que foram assaltadas, seqüestradas ou até mortas pelo criminoso que ainda está solto.

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